sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Texto do Professor Virgilio Mattos

DIGNO DE UMA GRANDE COMEMORAÇÃO
Virgílio de Mattos
Lembro-me dela na escola. Era uma escola especial dentro de um outro local especialíssimo. Ela me olhava com um jeito tímido desde o dia em que nos conhecemos, parecia uma criança. Sabe esse jeito de olhar que parece que a pessoa tá rindo? Ela olhava assim. Desse jeito. Ou ria de mim me olhando daquele jeito, como se pensasse: esse otário vive aqui onde ninguém quer ficar.
Na festa de formatura do ensino médio, até hoje uma raridade ali naquela escola, conseguimos fazer alguma coisa em grande estilo no refeitório, acho que o Sindieletro emprestou o som, ela continuava com o olhar quase mágico nos olhos trágicos cheios de lágrimas. Naquele dia todo mundo chorou de alegria, o que não deixa de ser uma contradição em termos.
Na memória ainda mais nítido o dia do vestibular. Puta que pariu, ô dia tenso. Só conseguimos os papéis todos na véspera, todo mundo numa má vontade de irritar. Parecia que não seria possível que ela e outras cinco colegas pudessem fazer a prova. Parecia uma corrida de obstáculos.
Até na hora de sairmos pra fazer a prova teve enguiço. Não sei se você se recorda do faniquito que a B. deu por causa da roupa, aquela tensão, todo mundo armado e inseguro com a escolta pouco usual. A doutora me perguntou onde é que estava a minha arma e eu respondi sem graça que tava dentro da pasta. Ela ainda me enquadrou dizendo que se eu precisasse como é que iria fazer até tirar a arma de dentro da pasta? Assim como você e as suas outras cinco colegas eu era um dos poucos desarmados naquele dia. Sabia que as únicas armas necessárias seriam o lápis n.2, a borracha e a caneta preta. O resto já estava dentro da cabeça.
Dei voltas pra ver se você via um pouco a cidade, mas a responsável pela segurança me deu uma dura observando que o caminho tinha que ser o mais curto possível e que a gente era pra estar em comboio. Acho que ela tava com medo, na verdade. Medo de vocês se saírem bem como saíram e aí? Como é que iria ser depois?
Você, minha querida, muito mais do que todos os outros colegas da sua turma – e então, acabou falando tudo pra eles ou ficou na sua? – sabe que essa conquista, o fato em si, é digno de uma grande comemoração.
Eu não vou à festa, não gosto de festa formal. Mas gostei de ter sido convidado. Colocar um terno é definitivamente uma proposta que não me seduz, nem pra ganhar dinheiro tenho usado. Também não irei à colação de grau, acho uma coisa tão insuportável que fico pensando porque não foi ainda abolida. Culto ecumênico você mesma riu do convite porque sabe que não sou dessa gangue. A religião é uma droga pesada que cria dependência e mata.
Fiquei sabendo que você nominou a gente no seu convite, que bandeira, heim?! E que tem gente roendo os cotovelos de inveja de você. Bem feito!
Eu queria dizer, J., que além de querer ter uma filha igual a você, que você me deu um orgulho imenso com a sua amizade e, sobretudo, com a lembrança. Acredito que só você mesma sabe dizer o quanto foi difícil superar os anos de universidade naquelas condições terríveis da penitenciária e da liberdade condicional depois dela. Não é só daquele lado, aqui também tá muito embaçado.
Agora que você tá formada, no mundão, cheia de condição e vontade – disposição nunca faltou, não é mesmo? – vê se tem como ajudar as companheiras de sofrimento, vê se tem como adiantar o lado do Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade de algum modo, nem que seja só falando bem.
Seu exemplo, J., é digno de uma grande comemoração. Vai na paz!

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Criminalização dos pobres

CUIDADO COM A PROPAGANDA ENGANOSA
Virgílio de Mattos
A gente pode sofrer, mas não pode nunca deixar de prestar atenção. Em toda e qualquer situação, até mesmo no campo fértil e lamacento das metáforas, se você não presta atenção pode se dar muito mal. Às vezes isso é irreversível.
Distraídos só são protegidos na canção, ou, quando muito, na literatura.
O Congresso Nacional, lugar onde havia sido detectada a presença de “300 picaretas” (você se lembra?), apresenta mais uma inacreditável “novidade” que vai deixar você com mais raiva ainda, leitor já suficientemente irritado com o Congresso e outros ajuntamentos de âmbito estadual e municipal. Inventaram uma solução pra tudo de ruim que existe no país e a solução é, obviamente, uma só: mais lei penal.
Original, não é verdade?
Há um projeto de lei (PL 3701/11) de um deputado do Mato Grosso do Sul, do baixíssimo clero - omito o nome para não dar-lhe os segundos de fama que pretende atingir com uma bobagem dessas -, querendo punir com detenção de 1 a 4 anos, mais multa, aos flanelinhas e limpadores de para-brisas existentes nos grandes centros urbanos. Obviamente que na interiorana e hipotética cidade de São João de Deus Me Livre, do interior do Piauí, esse “grave problema” dos flanelinhas não existe.
Convenhamos: é uma “novidade” velha. O próprio autor do projeto sustenta que um outro, em igual sentido, já estava ‘sepultado’ na legislatura anterior, com mesmo vetor de raciocínio e eu raciocino se não foi reeleito o seu anterior autor exatamente por apresentar projetos desse nível... Mas acredito que não se possa brincar com coisa séria.
A questão passa leitor atento, pela velha luta de classes aqui representada entre aqueles que têm carro e os que não têm nada, exceto a possibilidade de um ganho lícito – que a vingar a ideia do pouco atarefado e criativo deputado, breve se tornaria ilícito – quando podem “dar uma olhada” ou mesmo limpar o para-brisa nos sinais de trânsito, ganhando com isso “uma moedinha”, como a maioria deles pede em tom de súplica e não de ameaça.
Nenhuma originalidade na proposta de “sua excelência”. Imbecis outros, de variadas idades e tendências políticas, já se manifestaram contra o “grande problema” do país, que não é a sociedade dividida em classes e sufocada no sufocante desnível daqueles que têm o lucro como meta e norma em desfavor das imensas multidões de sem nada.
Pela tramitação regular o projeto de lei ainda será examinado pela pomposa “Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado”, obviamente que pode acontecer dos flanelinhas quererem fundar no Brasil um sindicato e daí para fazer desse enorme ajuntamento uma “república sindicalista” é um pulo, não é verdade? Não duvido que será incensado e aplaudido naquela comissão, afinal quando a questão é criminalizar condutas, pouca ou nenhuma diferença vejo nos governos que se sucederam após a ditadura militar, mesmo aqueles encabeçados pelo PT, o que é de se lamentar. Seguindo, tocando o barco enquanto o mar das criminalizações anda tão calmo, teremos o exame pela comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. E você duvida também da aprovação, leitor crédulo?
Duas grandes tolices outras aparecem na justificação do projeto, a primeira é que a “lucratividade desta informal ocupação tende a atrair mais e mais crianças, adolescentes e jovens para as ruas”.
Mas não seria mais crível e sensato desenvolvermos outros programas de inclusão que não passassem pela resposta monotemática da contenção penal?
A segunda é a utilização do verdadeiro “estelionato teórico” que é a teoria das janelas quebradas, revista até mesmo pelos seus próprios – e suspeitíssimos – autores, o deputado sustenta que aquele fracassado amontoado de sandices seria “uma estratégia de êxito para prevenir os delitos, segundo os autores do estudo, é resolver os problemas quando eles são pequenos”.
É mais do que claro que questões sociais não podem ser resolvidas pelo direito penal. Por que a insistência?
Tenha cuidado com a propaganda enganosa, enquanto não temos a oportunidade de “revogarmos” legisladores desse naipe.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Balanço da Reforma Agrária em 2011 feito pela CPT

Vejam balanço da reforma agrária em 2011, realizado pela equipe da
CPT do nordeste, objetivo e claro. 05/01/2012.

O início de 2011 foi marcado pela perspectiva de que o governo da Presidenta Dilma pudesse percorrer o caminho para superar os desafios e impasses históricos da Reforma Agrária no Brasil. Com o apoio da maioria no Congresso Nacional, a nova Presidenta teria, nesse campo estratégico, condições políticas para impulsionar um processo de Reforma Agrária, o que nunca foi feito no Brasil.
Apesar dessas legítimas expectativas, o que se configurou na prática foi que o Estado brasileiro direcionou toda a sua energia para garantir o avanço de um modelo ultrapassado de desenvolvimento para o país, com um perfil concentrador de renda, prejudicial ao meio-ambiente e às populações tradicionais.
De fato, as diretrizes política e econômica do governo são as mesmas do grande capital. Como consequência desta opção, os maiores impactados foram os trabalhadores e trabalhadoras rurais, as comunidades tradicionais, indígenas, posseiros, ribeirinhos, toda a diversidade de povos que vivem no campo brasileiro e a mãe Terra.
De um lado, isso reflete uma violência e o abandono do povo excluído. Do outro, tem provocado um momento de retomada de mobilizações e independência dos pequenos, frente à traição de quem julgavam ser aliados. Essa importante retomada vem acontecendo em toda América Latina.
No Brasil, a obsessão do Governo da Presidenta Dilma pela implantação de grandes projetos e pela produção ilimitada de commodities tem levado as populações tradicionais, indígenas e camponeses a retomarem seus originais métodos de protesto. Exemplo emblemático disto é o debate em torno da Hidroelétrica de Belo Monte e do Código Florestal.

A Reforma Agrária agoniza.

Os números da Reforma Agrária deste governo, em relação às famílias assentadas, foram ainda piores do que o primeiro ano do governo anterior. Em 2011, somente 6.072 famílias foram assentadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). O número é pífio e insignificante diante da quantidade de famílias acampadas que se encontram do outro lado das cercas do latifúndio do agronegócio. De acordo com estimativas do próprio Incra, existem aproximadamente 180 mil famílias debaixo da lona preta em todo o país.
De um lado, o número insignificante de desapropriações. Do outro, um imenso contingente de famílias sem terras. Esta realidade se choca com outra: a da grande disponibilidade de terras improdutivas e devolutas no país. Os dados oficiais mostram que mais de dois terços das propriedades de grande e médio porte não cumprem com sua função social. Terras improdutivas, assim como as devolutas, deveriam ser destinadas imediatamente para fins de Reforma Agrária, no entanto já possuem um destino definido: o agro-hidronegócio e os projetos de desenvolvimento.
Mesmo nas áreas de assentamentos, continuou faltando política de Estado. Neste cenário de total ausência de incentivo à agricultura camponesa, muitas famílias foram mantidas à mercê do capital, de seus interesses e de seus instrumentos de controle e de exploração. Nas regiões de monocultivo da cana-de-açúcar, por exemplo, as Usinas ocupam o vácuo deixado pelo Estado e se apropriam do território camponês, oferecendo financiamento, infraestrutura e assistência técnica às famílias, tornando-as reféns da lógica definida pelo modelo de produção do agronegócio.
Por outro lado, o Governo não mediu esforços para garantir o avanço do agronegócio e do latifúndio, principalmente sob áreas tradicionalmente ocupadas por camponeses e camponesas. Um dos exemplos mais marcantes aconteceu em maio, quando a presidenta Dilma assinou de uma única vez, o decreto de desapropriação de quase 14 mil hectares na Chapada do Apodí/RN, para implantação do Projeto de irrigação que beneficiará meia dúzia de empresas do agronegócio. Em consequência, serão atingidos e prejudicados milhares de pequenos agricultores que desenvolvem experiências de convivência com o semiárido, reconhecidas internacionalmente.
É espantoso que Lula, em seus últimos anos de governo, não tenha chegado a desapropriar 14 mil hectares para a Reforma Agrária no RN e que Dilma, muito provavelmente, não desaproprie 14 mil hectares para essa finalidade em todo o seu governo. Entretanto, logo no seu primeiro ano de mandato, ela já desapropriou essa grande quantidade de terras para atender ao agronegócio. Além deste caso, vimos também a desapropriação de cerca de 8 mil hectares na região de Assú, também no RN, para a Zona de Processamento de Exportação (ZPEs).
Para os Povos indígenas e quilombolas que travam no dia-a-dia um embate pelo direito a terra, enfrentando a chegada do agronegócio e dos projetos governamentais, não há o que comemorar em 2011. Foram homologadas apenas três terras indígenas, sendo duas no estado do Amazonas e uma no Pará. O Governo não se sensibilizou nem com a situação dos povos indígenas de Mato Grosso do Sul, em especial os Kaiowá e Guarani, que vivem em conflito com fazendeiros e usineiros da região. Nenhuma ação foi feita para homologação das terras neste estado. No caso das populações descendentes de Zumbi dos Palmares, fora a desapropriação do território da comunidade de Brejo dos Crioulos, em Minas Gerais, poucos foram os resultados conseguidos frente às reivindicações e resistências das 3,5 mil comunidades quilombolas existentes no Brasil. De todas, apenas 6% tem a titulação de suas terras.
Também em 2011 foi dada a concessão, pelo Ibama, da licença de instalação para a Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu (PA), o que possibilitou o início das construções na região. Belo Monte é uma das principais obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e a primeira de inúmeras usinas a ser instalada na região Amazônica para beneficiar as grandes mineradoras, devastar a floresta e acabar com a forma de viver dos índios. Com ela, expande-se sobre a floresta o modelo de exploração e degradação planejado há 50 anos pelo grande capital.
Na contramão do que reivindicam as populações tradicionais e os sem terras, o Governo ainda anunciou uma redução do orçamento da Reforma Agrária para 2012. De acordo com o projeto de lei orçamentária previsto para o ano de 2012, as ações de obtenção de terras terão uma drástica redução de 28% em relação a 2011 e de 31,2% em relação a 2010. Além disso, a assistência técnica, já inviabilizada pelo Governo nos anos anteriores, ainda sofrerá uma redução de 30% em relação a 2010. Para a implantação de infraestrutura, o orçamento prevê uma perda de 8% em relação a 2011. Já a área da educação sofreu uma perda de quase R$ 55 milhões em comparação a 2009, correspondendo a uma redução de 63% de seu orçamento.
O Retrocesso continuou também na lei. O ano de 2011 se encerra com mais uma vitória da Bancada Ruralista. A aprovação do Código Florestal no Congresso Nacional ultrapassou as expectativas dos aliados da motoserra no Governo. Com retrocessos históricos, o Código prevê, entre outros exemplos gritantes, a anistia aos desmatadores anteriormente a julho de 2008, no que diz respeito ao dever de recuperação ambiental. Posição esta, aquém do entendimento consolidado até então pelo conservador Poder Judiciário brasileiro.
Como se não bastasse, a Lei complementar de nº 140, no que se refere à gestão ambiental, foi sancionada pela presidenta Dilma no final do ano, sem alardes. Com a aprovação da lei complementar, as competências de gestão ambiental ficam diluídas nos Estados e nos Municípios, que são muito mais vulneráveis a pressões políticas e empresariais.
A nova ameaça de retrocesso em curso é o lobby para um novo Código Mineral, que vem sendo redigido no Governo e no Congresso Nacional, sem o debate e sem a participação da sociedade e das populações diretamente interessadas e que serão atingidas, em sua grande maioria comunidades tradicionais.

Enquanto isso, avançam os grandes projetos de forma truculenta.

Em 2011, obras impactantes como a Transposição do Rio São Francisco, a Transnordestina, projetos de mineração, construções de BR's, a especulação imobiliária, obras da Copa, Porto de Suape, a construção da Hidrelétrica de Belo Monte e do Rio Madeira, barragens, além de outros mega-projetos, foram um dos principais causadores de conflitos agrários no país.
Para se ter uma ideia da gravidade desses efeitos sobre as populações tradicionais, no período de janeiro a setembro de 2011, registramos um total de 17 assassinatos de trabalhadores no campo. Destes assassinatos, pelo menos 8 têm ligações com a defesa do meio ambiente, 04 estão relacionados com as comunidades originárias ou tradicionais.
Em Alagoas, ocorreu o avanço do projeto de plantação de Eucalipto por parte do Grupo Suzano, especializado na fabricação de papel e celulose. O Grupo reivindica uma área de 30 mil hectares para viabilizar o investimento. O Governo do Estado já sinalizou positivamente e já tem mapeadas as terras que serão destinadas para a plantação do monocultivo.
Na Paraíba, outro fato emblemático foi o apoio incondicional do Governo para a implementação de uma Fábrica de Cimentos da Empresa Elizabeth em uma área de assentamento no litoral sul do Estado. A área que será ocupada pela Empresa também é reivindicada pelo povo indígena Tabajara.
Em Pernambuco, a Transnordestina atingiu as comunidades camponesas por onde tem passado, desde o Sertão, como o caso do município de Betânia até a Zona da Mata, como as famílias de Fleixeiras, no município de Escada, que resistiram bravamente ao despejo que daria lugar aos trilhos da Ferrovia.

Lutas e Resistência Camponesa em 2011.

Os camponeses e as camponesas continuam lutando pela Reforma Agrária e resistindo ao avanço do latifúndio e do agronegócio. Mesmo diante de todas as dificuldades impostas pelo Estado e pelo agronegócio, estes camponeses teimam em reescrever a história. Das 789.542 famílias assentadas nos últimos dez anos, 87% permanecem resistindo e produzindo no campo, sem qualquer tipo de incentivo governamental para a agricultura camponesa.
Apesar da diminuição das ocorrências das ocupações e acampamentos em 2011, aumentou o número de famílias envolvidas nestes conflitos de luta pela terra. Este ano, de acordo com os dados parciais da CPT, foram 245.420 pessoas envolvidas no período de janeiro a setembro de 2011, enquanto que no mesmo período de 2010, foram 234.150 pessoas envolvidas.
Registramos em 2011 mais de 350 mobilizações no país, protagonizadas pelos povos do campo. É como se em cada um dos 365 dias do ano, camponeses e camponesas organizados se mobilizassem em defesa da Reforma Agrária, dos direitos dos povos do campo e pelos territórios dos povos originários e de uso comum.
Algumas grandes mobilizações marcaram este ano que se encerra. Em agosto, cerca de 70 mil mulheres camponesas ocuparam as ruas de Brasília, reivindicando seus direitos, durante a Marcha das Margaridas.
Naquele mesmo mês, mais de 4 mil trabalhadores rurais sem terra ligados à Via Campesina montaram acampamento na capital federal, exigindo do Governo o compromisso com a Reforma Agrária. Por sua vez, “Aperte a Mão de Quem te Alimenta”, foi o nome da marcha realizada pelo MLST, de Goiânia até Brasília, e que explicitou a importância da produção agroecológica e da criação de assentamentos para garantir alimentos saudáveis, sem utilização de agrotóxicos.
Mais recentemente, cerca de 15 mil pessoas foram as ruas em Juazeiro e em Petrolina protestar contra a proposta do Governo de construir cisternas de PVC, que vai contra toda a metodologia de relação com o semiárido, construída pelas populações ao longo dos anos.
Além dos trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra, os quilombolas e indígenas também estiveram firmes em suas manifestações em 2011. Durante o mês de maio, os povos indígenas realizaram uma de suas maiores mobilizações, o acampamento Terra Livre, realizado em Brasília e que reuniu centenas de indígenas de mais de 230 povos de todo o país para apresentar suas principais reivindicações. Já no início de novembro, mais de dois mil quilombolas estiveram reunidos em Brasília, quando ocuparam pela primeira vez o Palácio do Planalto durante a Marcha Nacional em Defesa dos Direitos dos Quilombolas.

2012: Marcharemos na Luta pela Reforma Agrária.

Apesar do Estado brasileiro e de seus governantes condenarem a Reforma Agrária à morte, ela segue a cada dia pulsando com mais intensidade nas veias dos camponeses e das camponesas, como se ouvissem os ecos do compromisso de Elizabete Teixeira, na ocasião do sepultamento do seu companheiro: "Continuarei a tua luta". Este é o chamado que ecoa para aqueles e aquelas que acreditam e lutam em defesa da vida, da vida plena.

“Eu vim para que todos tenham Vida e Vida em abundância.” (João 10:10)

Comissão Pastoral da Terra - Nordeste II – dia 5 de janeiro de 2012.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Agenda para 2012: viver mais o presente.

Por Gilvander Moreira[1]



Como não dá para viver sem agenda, vamos combinar umas coisas para o ano que se inicia. Vamos viver mais o presente? Vamos cultivar uma nova sintonia com a nossa própria história, convivendo e saboreando tudo que a vida nos oferece todos os dias, ainda que haja fatos que não sejam tão bons, mas que nos fazem crescer com a vida? Vamos começar o ano lembrando algumas tarefas significativas que podem ser essa ponte da nossa história de vida como novas possibilidades que serão boas não apenas para nós?

Dia 01 de janeiro, por exemplo, é o 45º Dia mundial da paz. No mundo católico, do qual muitos fazemos parte, propõe-se neste dia o tema “Educar os jovens para a justiça e a paz”. Que isso nos inspire na nossa missão de educadores fazendo-nos conscientes de que somente pode ensinar quem coloca em prática o que ensina e está sempre aberto para aprender com o outro.

No dia 22 de fevereiro, quarta-feira de cinzas, será o primeiro dia após o descanso ou alegria do Carnaval. Em 2012, o tema da Campanha da Fraternidade é: Fraternidade e Saúde Pública e o Lema: Que a saúde se difunda sobre a terra! (Eclo 38,8). A nossa tarefa nesse período poderá ser a alegria de pensar a saúde como o fim de todas as doenças. Podemos assumir nova atitude, respeitando em primeiro lugar os nossos próprios limites e depois multiplicando compromissos por vida saudável na alimentação, no cuidado com o nosso corpo, da alegria da nossa alma, na harmonia que vem do cuidado com todos os seres vivos. Além disso, que ninguém deixe de assistir ao filme-documentário O veneno está na mesa[2], de Sílvio Tendler, que alerta para o grande perigo que está chegando à nossa mesa: os agrotóxicos.

Na madrugada do dia 09 de abril, a comunidade Dandara, no Céu Azul, em Belo Horizonte, celebrará três anos de existência. Antes, centenas de famílias crucificadas pelo aluguel, por estarem sobrevivendo de favor, nas ruas ou em áreas de risco. Mas com a ajuda das Brigadas Populares, do MST, do Fórum de Moradia do Barreiro e de uma grande Rede de Apoio Externo, hoje, após ocuparem “um latifúndio urbano” que não cumpria sua função social, quase mil famílias vivem em comunidade já tendo construído mais de 800 casas de alvenaria, Igreja Ecumênica, Centro Comunitário, dezenas de liderança e, melhor, construindo pessoas. Dandara, como uma estrela luminosa, aponta o caminho para os pobres se libertarem de tantas escravidões.

Em abril, para celebrar a data da chegada dos portugueses ao Brasil podemos olhar melhor para todos os bens naturais que nos cercam, sem ficarmos tristes pela falta do feriado do dia 21 de abril, ou apenas lamentando a nossa condição de vítimas do sistema colonial. É hora de sairmos de fato do sistema colonizador. É uma boa oportunidade para estudarmos um pouco mais a História e ver tantas oportunidades que estamos construindo nesse momento no nosso país.

O dia 01 de maio, como todo ano, será feriado nacional. Que tal encontrar outros amigos trabalhadores em algum ato público que valorize o trabalho como dignificante para a vida? E que denunciemos toda forma de trabalho que agride a dignidade humana.

O dia 31 de maio, também poderá ser um dia de festa para todos que se inspiram no evangelho do galileu de Nazaré. Celebramos 60 anos de ordenação sacerdotal de Dom Pedro Casaldáliga – bispo emérito de São Félix do Araguaia, MT em 1952. Temos motivos de sobra para agradecer à vida por sermos contemporâneos de tão eminente testemunho profético. Que a centelha da profecia irradie no nosso modo de ser e de agir!

Em junho de 2012 acontecerá no Rio de Janeiro a Rio+20. O encontro reunirá chefes de Estado que debaterão sobre ecologia global e sustentabilidade. Mais importante que o debate dos chefes de Estado é a oportunidade que terá toda a sociedade mundial para pensar e exigir dos chefes do poder maiores cuidados com a vida no Planeta. Não poderemos perder mais essa oportunidade!

De 07 a 11 de outubro de 2012 ocorrerá o Congresso Continental de Teologia – UNISINOS – na cidade de São Leopoldo, RS. Que as vozes da Teologia da Libertação sejam ouvidas a partir do encontro e sejam inspiração para justiça e paz para todos.

E para os que gostam dos números inteiros temos muitas oportunidades de humanização em 2012:

São 150 anos da publicação por Victor Hugo de Os Miseráveis – 1862 - quem não leu ainda, está na hora. Depois de tanto tempo ainda temos muito que aprender com esse clásico da literatura mundial. No Brasil, temos 110 anos da publicação de Os Sertões, de Euclides da Cunha. Resgatar a história de Canudos pode ser boa inspiração para aprendermos mais com tantos fatos que estão no fundo das nossas gavetas.

Este ano é o marco dos 100 anos: a) do início da Guerra do Contestado - 1912-1916. Material para estudar é que não vai faltar neste ano; b) do naufrágio do navio Titanic. Pode ser um momento ideal para aprendermos mais sobre os limites da ciência e da técnica. As crianças vão gostar… Que o Planeta Terra não continue sendo empinado como um Titanic!

Celebra-se os 80 anos da conquista do direito de voto das mulheres no Brasil – 1932 -, é momento para que todas as mulheres possam ver que de fato a principal política não é a política partidária. Melhor fazermos outras formas de política.

Completam-se 70 anos do primeiro reator nuclear – 1942 – é hora de educação para a paz interior, social, ecumênica e ecológica, tudo isso como fruto da justiça, do amor e do perdão.

São 60 anos da criação da CNBB – 14/10/1962 – é hora de regatarmos os princípios do Concílio Vaticano II, da Opção pelos Pobres e pela juventude – de Medelín (1968) e Puebla (1979) – e o protagonismo das/os leigas/os – da Conferência de Santo Domingos (1992). É hora de fortalecer as Comunidades Eclesias de Base – CEBs.

Também chegamos ao meio século, 50 anos da prisão de Nelson Mandela na Africa do Sul – 1962 – é ano de participarmos do Movimento Negro, nas suas mais diversas expressões, e decretar o fim de todo e qualquer tipo de racismo e preconceito. Aliás, o Brasil é o país que tem a maior população negra fora da África. Todo nosso apoio aos quilombolas na demarcacão de suas terras e no respeito a sua cultura tão bela e exuberante. Que o povo negro das favelas descobra a força e o valor que tem e, despertos, não mais aceitem movimentar a engrenagem do capitalismo por uma migalha de salário!

Meio século também do filme O pagador de promesas, de Anselmo Duarte, 1962 – vamos valorizar a beleza do cinema e da cultura brasileira. Viva o povo brasileiro! É nas raízes mais profundas da nossa cultura popular, camponesa e tupiniquim que estão as chaves que poderão abrir portas para a construção de um outro mundo, justo e solidário.

Significativos também os 50 anos do início do Concílio Vaticano II, inaugurado pelo Papa João XXIII em 11/10/1962 na Basílica de São Pedro, em Roma, com a presença inédita de 2.540 padres conciliares, é hora de continuarmos a luta pela construção de igrejas democráticas, ecumênicas e populares, igrejas que animem a convivência a partir do princípio da compaixão-misericórdia.

São 40 anos da criação do Conselho Indigenista Missionário – CIMI – que o testemunho libertador de tantos apaixonados pela causa indígena nos faça solidários ao grande e plural Movimento Indígena na luta pela demarcação de suas terras, respeito às suas culturas e místicas de convivência harmônica com toda a biodiversidade. Feliz quem tiver a grandeza de aprender com nossos parentes indígenas! Sem a sabedoria indígena não há futuro para o povo brasileiro.

Parece que foi ontem, mas lá se vão 20 anos do impeachment de Fernando Collor de Melo – 1992. Em 2012 teremos eleições municipais para prefeitos e vereadores, dia 07 de outubro. Precisamos, nos limites da democracia representativa, aprender a votar em políticos por vocação. Aprender também que a maior parte das nossas energias devem ser dedicadas a lutas na Política que realmente faz diferença: a política dos pobres que lutam de forma organizada em movimentos populares autênticos. Apenas um pouquinho de energia em campanhas eleitorais. Não esqueçamos: o poder é exercido mandando-se, ou impedindo-se.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Espitualidade de Natal

Delze dos Santos Laureano[1]

Neste Natal de 2011 ganhei um presente inusitado!
Pelo meio do mês de dezembro fui surpreendida ao ler no blog do Professor José Luiz Quadros[2], de quem sou leitora assídua, um dos mais belos contos de Natal que já li. Vaidade à parte, o conto tem o seguinte título: A DELZE ACREDITA E LAURINHA TAMBÉM!

Nele o autor, Virgílio Mattos, escritor crítico e irreverente em suas provocações pedagógicas, conta a história de uma família acampada, que já na undécima hora da vida fértil e no desolador ambiente de um acampamento urbano, no qual as pessoas pobres desempregadas sequer são consideradas gente, ou mesmo reserva de mercado a ser explorada, descobre que vai ter mais um filho. Mostra Virgílio que a história se repete: tragédia e farsa. Há dois mil anos nascia pobrezinho (nisso eu e Laurinha acreditamos) Jesus de Nazaré, que de tão humano tornou-se divino. Deus se fez pessoa pobre para testemunhar um caminho de salvação. Vejam que contradição: nós procurando deuses para nos salvar. Deus, na contra-hegemonia do sistema, já sabe, há muito, que somente com humanidade há solução para os problemas humanos.[3] O modo como isso se dá? Destaca Virgílio, eu e Laurinha acreditamos numa parábola (obviamente ele permanece cético): o acontecimento da fecundação de uma virgem pelo Espírito Santo.
O texto do Virgílio mostra como em meio à pobreza exige-se das pessoas a mesma falsa moral burguesa. A ética violenta traz sofrimento pelo simples fato de se ter de explicar uma gravidez àquela altura da vida, ou até mesmo a coragem de se ter filhos sem as condições materiais mínimas, aos olhos, é claro, das classes altas, média e rica.[4] É assim mesmo. Aos pobres são impostos princípios morais e éticos que não são os deles. No modo de vestir, nas exigências para se manter a aparência física com o consumo de muito cosmético, totalmente incompatível com a remuneração que recebem pelo trabalho. Hipocrisia dizer que as pessoas têm de passar fome se não têm renda para comprar comida e que o furto é intolerável e deve ser punido com cadeia. Na lógica burguesa todos têm de pagar aluguel mesmo tendo de deixar de comer. Invadir a propriedade privada é um crime para eles e não deve ser tolerado. No entanto, os maiores invasores de terra são os ricos. Os poderosos são os que utilizam de forma predatória os bens naturais. Esse falso discurso ético da segurança jurídica protege mesmo são os muitos privilégios sociais em prejuízo dos mais pobres.
Com a família do conto do Virgílio não é diferente. Ao homem resta a opção dos biscates. À mulher o conformismo de uma vida de percalços e sustos, “mais sustos do que percalços”, ressaltou categórico o autor. E ao final falou a verdade. Eu acredito sim. Acredito que pobres têm o direito de ter filhos. Que o nascimento de toda criança é sinal da continuidade da espécie humana na terra, apesar de tantas atitudes suicidadas. Acredito em virgindade, que não significa hímen intocado, mas fertilidade sempre esperada, ainda que não confirmada. Eu, como o Gonzaguinha, "acredito é na rapaziada". Acredito na humanidade das pessoas apesar da coisificação de tudo em mercadoria. Essa que se tornou a salvação ilusória para todos neste momento da chamada crise do capital.
Por todo lado só se aposta na salvação pelo consumo, redução dos juros para os empréstimos, aumento das exportações, investimento em novas tecnologias. O discurso dominante de se manter o consumo, extraindo mais matéria prima para virar mercadoria, que vendida, consumida, mesmo sem necessidade, alimenta esse demônio voraz chamado mercado. De boca escancarada ele devora tudo rapidamente e pede mais mercadoria. Alimenta-se das forças da morte que trucidam essas pobres crianças que nascem todos os dias nas periferias do mundo, nas favelas, território urbano que sobra para os pobres e somente com muito esforço e tolerância diante das condições desumanas de vida, nas roças sem médicos e fustigados pelo avanço das monoculturas que abusam dos venenos. Nos acampamentos que são o resultado do “progresso”: apropriação dos lugares onde viviam as pessoas quando são tomados para as grandes obras para beneficiar os grandes mercadores e penalizar cada vez mais os pobres e a biodiversidade. Barragens, rodovias, portos, aeroportos para o progresso de uns poucos. Nas áreas inundadas pelas águas que sobram por cima de tanta impermeabilização irresponsável para manter o conforto dos donos da cidade.
Acredito sim, não em ídolos, mas no Deus da vida. Sou crente e também recorro ao professor Roberto Lyra Filho, que, citando o filósofo espanhol Ortega, ensina: as idéias são algo que adquirimos através de um esforço mental deliberado e com maior grau possível de senso crítico. A fé, sinônimo de coragem, é o que nos vem pela educação, pelo lugar que ocupamos na estrutura social. Por isso, eu acredito mesmo porque tenho consciência de classe. Creio na vida, na humanidade que celebramos em todos os natais. Eu acredito em tudo que decreta a morte da morte, enfrentando as forças hegemônicas do capital. Como Cervantes, sei que quem perde bens perde muito (veja as famílias que vivem nas áreas de risco e sofro com elas ao ouvir a chuva forte batendo na minha janela), quem perde um amigo perde mais (não podemos viver sem os nossos amigos, como você Virgílio, que, ao compartilhar às escancaras suas incomodações nos faz crescer), mas quem perde a coragem de ser centelha do divino perde tudo! O Natal nos fortalece na coragem, no agir com o coração, irando-se quando uma injustiça é cometida e se comovendo com a dor do próximo, seja ele de qualquer “cor”.
Assim, bem vindo o Natal! Precisamos de vida nascendo para o humano, não para a mercadoria. Nisso você acredita, eu e a Laurinha também. Vamos, como Menotti del Picchia, ouvir a voz da coisas. Elas mesmas estão gritando: NÃO COMPRE! Nesse Natal e nos outros não vamos mais cair na armadilha de que o aumento das vendas irá salvar o Menino nascido de uma mulher, mas que um dragão apocalíptico ameaçava devorar[5], dragão que, hoje, tem nome: capitalismo.
Feliz 2012 para toda a humanidade, com espiritualidade fraterna! É hora de sermos presença, presente de vida. Basta de presentes de materialidades, simulacro que deturpa o sentido verdadeiro do Natal. Como os magos que, seguindo uma estrela, foram visitar o menino Jesus, urge seguirmos por outros caminhos.
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[1] Advogada, professora, Doutoranda em Direito Internacional Público pela PUC MINAS; Integrante da RENAP – Rede Nacional de Advogados Populares; E-mail: delzesantos@hotmail.com
[2] www.joseluizquadrosdemagalhaes.blogspot.com
[3] Lembro-me sempre dos conselhos de Menochi del Picchia, na Voz das Coisas, no poema Juca Mulato: “ Não fujas que eu te sigo...onde estejam teus pés, eu estarei contigo. Tudo é nada, ilusão.” A nossa humanidade nos segue desde o nascimento até a morte. Há muitos que ainda se acham imortais! Se sentem deuses, porque são ricos...
[4] É recorrente encontrarmos falas estúpidas que criticam as mulheres pobres que têm filhos sem as condições de educá-los. Chega-se ao absurdo de impor esterilizações forçadas ou até mesmo severas críticas ao exigir acriticamente o uso de contraceptivos para os pobres. Vemos sempre que quem critica gosta muito desses filhos de pobres quando se transformam em trabalhadores servis, os de baixa remuneração para os trabalhos mais desqualificados. O problema é quando esses filhos insurgem-se contra a ordem. Temos como exemplo os jovens pobres na França e Inglaterra que começam a incomodar ao resistirem às abordagens truculentas da polícia estatal.
[5] Uma mulher deu à luz um menino a quem o dragão tentou devorar. (Cf. Apocalipse 12,1-12)

A Delze acredita, a Laurinha também!

A DELZE ACREDITA, LAURINHA TAMBÉM!

Virgílio de Mattos

O velho trabalhador coça a cabeça desconfiado, que história é essa, logo agora, de um filho?
Embora a situação não esteja pra isso, afinal com a idade que tem nem as construtoras que estão laçando qualquer burro pro trabalho duro, se interessam pela sua experiência em fazer qualquer coisa com madeira, operário que, assim como seu pai, levou a vida inteira vendendo a única coisa que podia vender: sua força de trabalho. Está desempregado e velho. Inexoravelmente velho, desgraçadamente desempregado. E ainda por cima com um filho pra criar, logo agora?
Em qualquer outro final de ano do passado a notícia seria bem-vinda, mas agora, sem emprego e sem perspectiva, é que essa velha conformista vem dizer que está grávida?! Pensa alto um “merda” e segue martelando uns restos com os quais pensa em fazer um berço na frente do barracão que acumula as funções de casa e oficina, onde se lê FAZ TUDO, com o zê grafado ao contrário, como se estivéssemos lendo num espelho. José é um hábil artesão mas tem pouco contato com a escrita.
Nem as línguas mais maledicentes do entorno ousam falar mal dela, conformista conformada com uma vida de percalços e sustos, mais sustos do que percalços nessa época das águas destruindo tudo. Nem ela mesma acredita que esteja grávida quando pensava tratar-se da menopausa. E agora? Como é que vai ser? O que vai ser desse menino ou dessa menina?
Na ocupação crepitam esperanças como se fossem fogos de artifício, ainda que os planos repressivos estejam sempre prontos através dos tempos. Os poderosos raciocinam: “é só uma questão de tempo”.
Faz mais de dois mil anos que os filhos pobres dos pobres trabalhadores, sejam eles qualificados ou não, sofrem o mesmo tipo de exploração: a eles só restará vender a própria força de trabalho...
Faz muito tempo que Delze e Laurinha acreditam nessa fábula da mulher do carpinteiro ainda virgem ter engravidado do espírito santo. Mas eu sempre pensei que isso fosse uma fábula, ou quando muito uma parábola. Ninguém pode acreditar numa estória dessas através da história, não faz sentido.
Eu penso na dificuldade daquele carpinteiro explicar pros vizinhos da ocupação aquele filho. Penso nas tropas especiais da polícia procurando a criança pra ser destruída, penso nos barracos destruídos não pelas forças repressivas a serviço da exploração, mas pela burrice dos alcaides de plantão em pensar – poderosos de ocasião – que podem conter a força das águas com estupidez e concreto, grana por fora das empreiteiras e gana de acumulação.
Penso, sobretudo, nos idiotas que naturalizam essas questões com o mais estúpido ainda “sempre foi assim”. E que transformam o aniversário de um deus que Laurinha e Delze acreditam na verdadeira festa dos comerciantes.
NÃO COMPRE!
Nesse natal e nos outros não caia na armadilha, esteja preparado para denunciar as religiões, essa droga poderosa, e, sobretudo, a epidemia de falta de solidariedade – esse atoleiro – que pululam como cogumelos nessa época das águas.
Despreze as ilusões, leitor molhado, prepare-se pra luta. Nisso também a Delze e a Laurinha acreditam, e você?

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Usina de Belo Monte - um crime ambiental do nosso tempo por Antônio Claret

Altamira: primeiras impressões
Contra a força destruidora do capital somente a força soberana do povo organizado
Antônio Claret Fernandes*
O mineiro carrega consigo a nostalgia das montanhas, mesclada de saudade, por antecipação, um pouco de desconfiança e certa ironia. É Assim, pois, que chego a Altamira, essa cidade banhada pelo imponente Xingu, ameaçado pela prepotência do Capital.
Outrora aprendi que homem não chora. Não é que chorei nesses poucos dias, mas a saudade é grande! Nomes de pessoas, antes comuns e corriqueiros, agora me invadem a mente e se apresentam como memoráveis. Muito particularmente, o soluço e os olhos lacrimejados de minha mãe, ela que é tão forte, não me sai da memória. Sua voz, cheia de fé, ainda soa em meus ouvidos: ‘Nossa Senhora acompanhe você!’.
Embora não seja muito dado à inovação tecnológica, procurei sondar pessoas do ramo e, com toda a falta de jeito - pela índole matuta e camponesa -, percorri algumas lojas de celulares em Altamira e, por fim, cadastrei-me num plano da Vivo pelo qual se pode falar um minuto para qualquer parte do Brasil por cinco centavos.
Passei o número imediatamente para algumas pessoas amigas e, via e-mail, mandei um recado: ‘se precisar ligar, esse é o telefone!’. E coloquei o número! Confesso que poucos minutos depois, e por diversas vezes seguidas, sempre que me lembrava do celular, abandonado sobre a cama, ia ao quarto e olhava se não havia alguma chamada. Na verdade, estava louco que alguém ligasse!
Cansado de aguardar, coloquei o celular no bolso e, entretido com outras coisas, acabei até me esquecendo dele. E ele tocou! Sua vibração no bolso me deu um susto e, após um riso sem graça diante de um colega que percebera a reação, invadiu-me uma alegria imensa, pois, enfim, pensei, alguém está ligando. Olhei o número: desconhecido. À alegria seguiu-se um desapontamento diante da pergunta, do outro lado: ‘é a Celina’? E depois: ‘desculpe, foi um engano!’.
Tocado tão fortemente por aquele sentimento, me dei conta de que, aos 47 anos, nunca ficara mais que quatro meses seguidos fora de casa. Logo eu, que me achava bastante desprendido, quase sem parada certa, agora passando por essa ‘bobagem’; logo eu que viajara por diversos estados do Brasil, e por alguns outros países, agora me achava ali, doído de saudade. É que entre uma andada e outra se interpunha uma passada em casa, breve que fosse. O que agora eu sentia era, na verdade, uma espécie de saudade por antecipação: ainda que não se tivesse completado uma semana de nossa estada em Altamira, a previsão era para três anos, e isso me tirava do sério, e desconsertava.
Continuo convicto de que ‘nossa pátria é o mundo’, mas todo mundo precisa de um ninho; não para apegar-se, mas para ser-lhe referência, feito terra firme sobre os pés. E o novo ‘ninho’ está, ainda, em construção. Será no seio do povo, nosso aconchego e proteção.
Sentir a distância das pessoas queridas me despertou, de repente, o sentido da solidariedade, e resolvi passar uma mensagem para Dayana, bem longe e sem ir à sua casa há mais de dois anos. Ela faz medicina em Cuba pelo MAB num curso com duração de sete anos. Mas não deu certo! O endereço dela no computador devia ser antigo e a mensagem voltou.
Entre os nomes grudados na memória, alguns, às vésperas de nossa partida de MG, expressavam uma especial preocupação com a nossa segurança. E diziam: ‘cuidado com os índios’! Eu ria sem dizer nada. E agora rio sozinho, cada vez mais convicto de que, se há que se ter cuidado, é com os inimigos dos índios: barrageiros, madeireiros e muitas autoridades, prostrados de joelho frente à força do Capital. Esses são perigosos!
Altamira é uma cidade de contradições! O Xingu, banhando-a, oferece-lhe, gratuitamente, uma vista singular e, aos moradores e visitantes, uma orla aconchegante. Ali é o local do encontro, da convivência e descanso, em especial nos finais de tarde e à noite. Os namorados se encontram, encostados nos muros. As pessoas caminham, correm, e alguns fazem exercícios, espichando a perna sobre um banco e apertando o joelho. A brisa do rio contrasta com o mormaço e o sol escaldante.
Tirado esse cartão postal, que é bem cuidado, Altamira, semelhante às outras cidades da região, carece de políticas públicas elementares. O esgoto corre a céu aberto nos cantos das ruas. Parece não haver serviço de limpeza urbana. Em diferentes pontos, urubus disputam as sacolas de lixo, buscando alimento.
A periferia é pior! As áreas alagadiças, particularmente, onde residem muitas centenas de famílias, a situação é deprimente. Os esgotos, o lixo e, no período das cheias, a água parada sob as palafitas propiciam a incidência de diferentes vetores de inúmeras doenças graves. Essa população mais simples, por vezes em miséria, é a mais sofredora. Mas não perde seu encanto pela vida, manifestado no espírito da boa acolhida.
O mormaço de Altamira, como se fosse uma estufa, impõe uma especial característica às lojas: boa parte delas, particularmente as mais equipadas, dispõe de ar condicionado, por vezes de porta fechada com a inscrição: ‘empurre’! Andando pela rua, sob um sol de rachar, entrei diversas vezes numa ou noutra loja; não para comprar, que não sou desse feitio, mas para me refrescar um pouco naquele ambiente.
As contradições de Altamira tendem a se agravar, enormemente, se Belo Monte for construída. Antes mesmo de sua implantação, os sinais dos impactos negativos são visíveis. São vários os boatos que correm nas ruas, mas nem sempre se confirmam. No dia 27/09, por exemplo, dizem que 1000 homens chegaram à cidade, todos atraídos pela promessa de emprego. Correu em boca miúda que um sujeito teria andado a região avaliando os melhores pontos para se implantarem os bordéis.
Os sinais se fazem visíveis, também, na orla. Os bares, antes rústicos, agora vão ganhando uma nova performance, sem perder seu ar de simplicidade, ao menos por enquanto. Cadeiras e mesas se estendem às dezenas em áreas espaçosas. Os carros estacionados com placas de cidades variadas, o perfil das pessoas sentadas às mesas, e o seu sotaque, desvelam esse novo momento. Altamira não é mais a mesma! A cidade vem sendo invadida por pessoas de diversas partes do Brasil, cada qual com seus interesses e motivações. Eu e um colega de Minas Gerais nos incluímos entre esses.
O comércio, no geral, está movimentado! Um exemplo típico são as lojas de celulares, ramo dominado pelas empresas TIM e VIVO. Num espaço relativamente pequeno, da VIVO, contei dez funcionários, todos ocupados no atendimento aos muitos clientes; a maioria, como eu, buscava ali uma forma eficaz e econômica de comunicação com seus estados de origem. Uma equação difícil, senão impossível! Os planos atraentes, que os funcionários trazem na ponta da língua, nem sempre funcionam.
Do ponto de vista econômico, Altamira começa a experimentar um momento de economia aquecida, para alegria dos empresários em geral. Do ponto de vista sociológico, Altamira está, literalmente, inchando. Em pouco tempo o número de habitantes quase dobrou, saltando para 105 mil habitantes.
Em recente Audiência Pública na cidade, debateram-se os impactos e ameaças do projeto de barragem de Belo Monte. Empresários, com sua visão capitalista, políticos, e parte do povo, que hoje vive na miséria, vêem em Belo Monte um sinal de redenção. O Governo Federal, seduzido e influenciado pelo deus-capital, se aproveita dessa situação, e faz promessas de políticas públicas em troca de Belo Monte. Muitos, porém, questionam e resistem. Um cidadão falou do pós-barragem, como uma ressaca depois da tsunami no mar bravio. O representante do consórcio respondeu, na maior cara de pau, que o momento não seria para isso: ‘ocupemo-nos agora dos empregos gerados, não com o que será daqui a 10 anos’.
Ele procurou dissimular-se, pois sabe muito bem que o efeito ressaca, mais que o aquecimento repentino, é desastroso. Já existem, hoje, várias cidades fantasmas no entorno de barragens as quais, depois de um período ‘aquecido’, caem no completo esquecimento. O que ele fez pode chamar-se de pragmatismo de má fé.
É comum governos e empresas se servirem desse artifício para desviar a atenção do povo. Lula fizera algo semelhante em sua visita a Altamira no 2º semestre de 2010. Acossado por pessoas contrárias a Belo Monte, disse que, ao invés de se posicionarem contra, deveriam pensar formas de uso dos 4 bilhões de reais reservados para a região. Não se sabe, até hoje, se a promessa é real.
Há gente se mexendo feito pigmeu contra gigante, ciente de que todo gigante, por grande que seja, tem os pés de barro. Todo império tem sua fragilidade! Há uma luta histórica da Prelazia do Xingu na defesa dos ribeirinhos e dos povos da Amazônia. Existe o Xingu Vivo, que vem denunciando amiúde esse Belo Monstro e fazendo uma grande articulação, dentro e fora do Brasil. Existem, ainda, movimentos populares incipientes, entre eles o MTD – Movimento dos Trabalhadores Desempregados e o MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens. Há reações espontâneas em áreas ameaçadas pelo projeto Belo Monte, na região urbana de Altamira, com ocupações, duramente reprimidas pela força bruta.
A intervenção do Ministério Público Federal anunciada no dia 28/09 e sua proibição de intervenção das obras de Belo Monte no leito do rio Xingu soou em nosso meio como piada de mau gosto. É que, no momento, não existe nem está planejada nenhuma intervenção direta no rio, pois a prioridade da empresa até dezembro é a infra-estrutura de acesso à região da barragem. O trecho da transamazônica perto da volta do Xingu está sendo asfaltado e os travessões melhorados com essa finalidade, e essas obras continuam a pleno vapor.
Quanto aos peixes ornamentais, principal objeto da suposta paralisação das obras, faz-se necessário um esclarecimento. Não se trata de alguns peixinhos de aquário; trata-se de uma variedade imensa de peixes ornamentais endêmica da Volta Grande do Xingu, a qual se estende por um trecho de mais de 100 km, que será extinta, caso a barragem seja construída. Há ainda outros peixes, animais e plantas que, também endêmicos, teriam o mesmo fim.
O impacto sobre o rio e seu entorno significa o impacto sobre o ser humano. O exemplo são, de novo, os peixes ornamentais. Os pescadores conseguiram junto ao IBAMA uma licença para sua exploração sustentável, inclusive para exportação. Extingui-los é, portanto, tirar o ganha-pão desses trabalhadores. É muito contraditório que o IBAMA, tendo concedido licença aos pescadores, agora conceda uma licença a favor de Belo Monte, pois as duas atividades são conflitantes entre si.
Essa ‘aparente’ contradição do IBAMA tem uma explicação. Belo Monte não é uma decisão dos órgãos ambientais nem do governo, mas do Capital, ao qual o governo é subserviente. Essa clareza é importante! Os que se arvoram a levar adiante esse crime anunciado o fazem de forma consciente, para acumulação de capital. Buscar convencê-los do contrário é o mesmo que dizer ao gambá para não mexer na ninhada de ovos, sem expulsá-lo com uma boa sova. Contra a força destruidora do capital somente a força soberana do povo organizado.
Esse é o principal senão o único desafio de todas as entidades e pessoas que desejam, honestamente, defender os bens naturais e os povos da Amazônia: a organização! O acúmulo histórico de alguns segmentos e entidades e sua unidade, o encantamento do povo e a articulação com os parceiros, dentro e fora do Brasil, são elementos decisivos nessa dura, mas importante empreitada.
Enquanto esquenta o debate da barragem de Belo Monte no Brasil e no mundo, com visita de representação indígena a países da Europa, pega fogo, literalmente, numa região rural de Altamira. Seiscentas cabeças de gado foram retiradas em tempo, mas boa parte da área com mais de 15 mil pés de laranja foi destruída. O fogo lambeu 400 ha de terra!
Logo no início do incêndio, ainda pela manhã, a Prefeitura e o Corpo de Bombeiros foram acionados, porém só chegaram depois de quatro horas. E não conseguiram acessar o local pelas más condições das estradas.
Os agricultores, que vinham buscando conter o fogo com seus próprios meios, mas sem sucesso, entraram em desespero e xingaram muito; a polícia foi acionada, um trabalhador quase foi preso. E o fogo, que se iniciara de manhã, varou a tarde e entrou pela noite, apagando depois por sua conta e risco.
*Padre e militante do MAB em missão na Amazônia.